e) O trabalho
O trabalho possibilita o caminho das abstrações que conduz à definição de categorias do real, buscando aquelas categorias mais simples, porém com possibilidade de maiores explicações para a situação em que se encontram a realidade e as situações de determinação, onde estão acontecendo atividades de educação. O trabalho se constitui como elemento constante na dimensão do popular, sendo o fazer educativo, efetivamente, o trabalho em si mesmo. Na educação voltada aos interesses dos trabalhadores, o trabalho intelectivo dos atores dessa educação percorre o caminho da produção de abstrações mais gerais com condições explicativas da situação de vida daquela comunidade ou grupo social.
Com essas abstrações mais gerais, torna-se possível a compreensão da situação do momento em que se vive, possibilitando além disso maiores e melhores explicações históricas das determinações de cada momento histórico dos objetos de estudo. Assim, torna-se possível a definição daqueles instrumentos teóricos, das categorias teóricas que possibilitam, finalmente, definir-se de que forma montar a análise e por onde começá-la, buscando resposta às questões levantadas. É um processo de trabalho que vislumbra a produção do conhecimento social e útil, capaz de tentar superar a realização do trabalho alienado.
Este trabalho social gera um produto que também apresenta suas contradições, mas que se constituirá, sobretudo, como uma mercadoria social, na medida em que é produzida por aqueles que realizam a educação de cunho popular. É um produto, seja conhecimento teórico ou tecnológico, que precisa ser gerenciado pelos produtores principais, tornando possível a socialização desse produto, caracterizando esse momento como o da devolução das análises ou outros produtos culturais aos seus produtores. Vive-se, nesse momento, a apropriação dos bens culturais, por meio desse trabalho intelectivo ou técnico. Isto possibilita um novo agir sobre a realidade, gerando conhecimento nas ações pedagógicas, aprimorando, ainda mais, a capacidade de aprender desses atores, buscando dimensões outras de facilitação dessa aprendizagem, elaborando outras teorias em educação, e ainda desenvolvendo as suas habilidades políticas para intervirem na elaboração da própria política da educação com novas normas e orientações pedagógicas. Um trabalho que, do ponto de vista ontológico, orienta-se para a realização das necessárias transformações, buscando-se a superação de processos de exclusão e promotores de injustiças.
O trabalho, enquanto categoria que embase a educação popular, se concretiza nas ações do coordenador de grupo de educação, dos educandos e por todos, como construção teórica de categorias que os instrumentalizem para análises sobre a realidade e as questões comunitárias. Um trabalho que irá se expressar, também, como um direito e um dever das pessoas. As necessidades de transformação contidas na ação pelo trabalho são expressão das necessidades da comunidade ou da população para gerar riquezas para todos. O trabalho como condição básica do existir humano – a produção de sua sobrevivência.
Com essa dimensão, o trabalho provoca, de forma intrínseca, a necessidade de participação na criação e na transformação do meio ambiente, da vida, da história. Do ponto de vista econômico, possibilitando gerar ocupação para todos, promove a subsistência também de todos. Trabalho como expressão de apoderamento dos bens culturais produzidos pela humanidade. A posse de bens culturais, de forma geral, vai favorecendo a caminhada pela igualdade, liberdade e autonomia das pessoas.
f) A autonomia/liberdade/igualdade
Autonomia pode ser entendida como a condição de cada um de poder governar-se por si mesmo e de forma independente. Interliga-se com a liberdade, tendo em Kant o significado da capacidade que o indivíduo tem de agir por si mesmo. Como liberdade, autonomia pode traduzir um sentido político. É de Spencer a conhecida formulação de que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”. Há, de forma explícita, uma delimitação para o exercício da autonomia, traduzida pela limitação direta do exercício da liberdade. Liberdade de poder exercer os direitos elementares da pessoa, como o de expressar o seu pensamento de forma oral ou escrita. Isto, contudo, traz em si mesmo a responsabilidade pela ação ou as conseqüências dos atos. Particularmente a forma oral, em que a educação popular se realiza, já lembra Freire, tem o papel de quebrar o silêncio incrustado nas pessoas. Autonomia e liberdade em educação popular adquirem uma dimensão particularmente filosófica, trazendo a discussão de sua realização em sentido absoluto, total. É possível a sua efetivação in totum? E os condicionantes sociais, políticos, econômicos, biológicos, psicológicos que a limitam? Ora, Sartre encontra no ser humano a possibilidade de realização da liberdade. Para ele, “o homem é livre - porque somos aquilo que fazemos do que fazem de nós”. O ser do homem e o seu ser livre não apresentam diferenças. São, ao mesmo tempo, seus constituintes e seus constituídos.
Pode-se vislumbrar na autonomia um sentido de pensamento. O direito inalienável que a pessoa traz consigo de externar o seu pensamento, em sua forma estrita. Isso mostra a luta da pessoa pela liberdade de expressar o seu pensamento. Sempre se pode lembrar Voltaire: “Não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizê-lo”. É a expressão, possivelmente, mais elevada da clareza e da necessidade da liberdade de pensamento do outro. Assegurar essa liberdade ao outro é a garantia do desejo de liberdade para o eu, um desejo intrínseco promovido nas metodologias de educação popular.
Autonomia, como liberdade de, traz consigo um sentido também ético. Ética aqui entendida como expressão do direito que tem a pessoa de agir sem constrangimento de qualquer força externa. Liberdade esta tão reivindicada e defendida por René Descartes, que na educação popular se concretiza pela promoção do diálogo.
g) O diálogo
O diálogo como componente educativo faz parte da tradição grega, presente nos exercícios filosóficos de Platão, por meio de seus conhecidos diálogos. Compõe igualmente, nos dias de hoje, o cerne do pensamento harbemasiano, constituindo-se no elemento ético básico de toda a formulação e exercícios educativos freireanos. Como um exercício teórico, torna-se prático na educação, tendo sua relevância como um projeto político-filosófico por meio da ação educativa, marcantemente, em processos de educação popular. É mais que conhecido o limite da natureza e da inteligência de cada pessoa, impossibilitando a visão global de tudo, sozinha. Mas cada um pode se comunicar e tomar conhecimento das idéias e sentimentos – sofrimentos, divergências e perspectivas - dos demais, tornando possível a discussão ou momentos educativos de ensinamentos e de aprendizagens. O diálogo, como uma capacidade humana de perguntar e responder ao outro, assegura essa possibilidade.
Historicamente, o diálogo é apresentado com Sócrates ao introduzi-lo como técnica de perguntar e responder, à procura da verdade. Como arte de dialogar, adquire a metodologia do confronto de perspectivas entre aqueles que dialogam, definida a partir de critérios de coerência lógica. Originariamente, a arte do diálogo (diá-lógos) é a própria dialética. Vê-se que o advérbio diá que, entre outros, assume valores espaço-temporais (através, entre, durante), causais, modais (com), bem como de estado ou condição. Como prefixo verbal, diá também adquire uma variedade de significados, entre os quais divisão e separação. Como base para a dialética, podem ser encontradas expressões várias como dialégein para significar, entre outras coisas, escolher, selecionar ou mesmo sua forma derivada dialésgesthai com a significação de conversar com, raciocinar com.
Constitui-se ainda do verbo légein, que é rico de sentidos, vários deles convergindo para o significado de escolher cuidadosamente, contar, ou mesmo ainda a expressão dialégein com a significação de desenvolver (de forma completa) um discurso. De légein a lógos, de dialégein a dialégesthai (um agir que originará diálogo), há um processo de superação e manutenção de conceitos anteriores que irão fundamentar a análise da unidade entre pensamento e palavra, da unidade entre um ato comunicativo e um ato reflexivo, da intersubjetividade e subjetividade ou mesmo a busca de um horizonte que fundamenta a relação entre aquilo que se “diz” e aquilo que se “é”. Com essa origem, dialética se confunde com a descoberta grega do lógos e o seu exercício, em Platão, é o próprio ato de filosofar.
O diálogo, em Platão, se mostrará como elemento constituinte da própria estrutura do pensamento e distanciada da formulação sofística que o tem, apenas, como o principal instrumento de poder político, demarcando, inclusive, pela diferença entre a escrita e a palavra, o campo da linguagem. É, ainda, em Platão, um pensamento que se afirma com a ética na política. Diálogo, portanto, como fundamento desse espaço privilegiado à aprendizagem e ao exercício ético.
As experiências em educação popular, tão externadas nas obras de Paulo Freire, conduzem à legitimação dessa ética, sendo marcante também no pensamento de Habermas. Diálogo como espaço à educação expresso pela relação intersubjetiva e estrutura do pensamento. Uma atitude que tem desafiado as relações humanas e o seu exercício educativo, considerando que o percurso do assumir e do experimentá-lo abre sempre o risco de o sujeito perder o seu mundo, mas que, na verdade, está ganhando-o na abertura, pelo mesmo diálogo, para o outro, educando-se no outro e educando-o, também.
Nas práticas em educação popular, renascem dimensões filosóficas que compuseram a formação do homem grego, o marco ocidental para a educação, tendo em Sócrates o seu maior fenômeno pedagógico que constitui o diálogo como a marca educativa ocidental, estando na essência dos exercícios educativo-políticos e populares. O diálogo, em educação popular, provoca processos de reconstrução crítico-hermenêuticos constantes quando dos dizeres e fazeres que vão se externando nas obras de seus próprios partícipes. É hermenêutico, pois se trata de um exame interpretativo daquilo que vai sendo gerado no ato educativo e adquirindo dimensão didática à medida que se promove a escrita. No aspecto filosófico, essa prática se torna crítica enquanto dialética, ao se ter no diálogo o percurso ético, fundamentado na idéia da autonomia do sujeito ou uma ética do discurso, presente no pensamento habermasiano e que permeia o pensamento freireano.
Habermas elege como tema central de suas análises a racionalidade da sociedade atual, definindo-a como razão instrumental, expressão de meios para se alcançar algum fim determinado. Sua análise mostra que tanto o desenvolvimento técnico como a ciência, voltada à aplicação prática e como produto dessa razão instrumental, são responsáveis pela perda da autonomia do sujeito, visto que está submetido às regras dessa dominação técnica. A crítica, para Habermas, portanto, terá um papel de superação dessa situação estabelecida pela razão instrumental, no sentido da recuperação da dimensão de interatividade humana e de uma outra racionalidade não instrumental, baseada no agir comunicativo entre sujeitos iguais, livres e em condição de sua emancipação em relação à dominação técnica. Sua crítica à objetividade da ciência e à verdade do conhecimento científico passa pela redução do conceito de razão no positivismo, meramente, como procedimento metódico e lógico-formal, considerando que a razão instrumental não se aplica à moral e à prática humana. Estas serão, necessariamente, as dimensões que deverão estar presentes na razão dialógica e comunicativa, estabelecendo uma teoria da intersubjetividade comunicativa. A impossibilidade da ação emancipatória entre os sujeitos, produzindo relações assimétricas na sociedade, é realizada pela ideologia. O desmascaramento dessa distorção será promovido pela crítica, ao retomar, assim, a razão emancipatória. Habermas estabelece uma teoria da ação comunicativa que tem no diálogo um esteio para sua realização. A razão comunicativa, portanto, só existe pelo processo dialógico estabelecido entre os atores em uma mesma situação. Uma razão pautada por interações espontâneas, dando, contudo, maior rigor ao discurso. Razão como procedimento argumentativo, quando dois sujeitos se põem em acordo com a verdade, justiça e autenticidade. A verdade, assim, vai se erigindo, de forma dialógica, seguindo a lógica do melhor argumento. Uma razão que promove o surgimento da significação das coisas, pessoas e relações consensualmente elaboradas e respeitadas, resultantes do diálogo entre o ego e o alter.
Diálogo que está presente na obra de Paulo Freire, tomando forma na sua visão de liberdade e de educação. A sua pedagogia não enaltece aquele que ensina (o professor), mas aquele que coordena as atividades de docência, promovendo a prática do diálogo. O diálogo é a condição essencial de sua tarefa de coordenador que se afirma sem imposição e cuja condição de aprendizagem associa-se à tomada de consciência da situação vivida pelo educando. Esta situação se concretiza à medida que se desenvolve o diálogo do homem com o homem. Assim, ele constrói a liberdade como um modo de ser e define o seu próprio destino, só podendo ser sentido na história dele mesmo.
A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória, presa a um juízo existencial onde se faz necessária a liberdade da prisão da ignorância e da inconsciência. Sua tarefa educativa tem como ponto de partida o assumir a liberdade e a crítica como o modo de ser do homem. Uma pedagogia orientada pela interpretação do mundo, considerando que todos se educam pelo diálogo, intersubjetivamente.
A dialética e hermenêutica, tão presentes e necessárias no exercício educativo popular, historicamente, têm se apresentado como opostas, sendo isto, porém, apenas de forma aparente. Nas práticas educativas populares, é fácil de se ver que a dialética, enquanto crítica, exige o dado, o espaço histórico e o sentido. Este irá constituir-se como elemento que conduz à interpretação do mundo vivido, na visão habermasiana. Ora, a crítica, ao exigir a interpretação, direciona a dialética para a hermenêutica. Pela hermenêutica será apresentada a identidade do algo em debate e pela dialética será acentuada a sua diferença e o seu contraste. Nesta discussão do diálogo como elemento de origem, a interpretação possibilitada pelo instrumento hermenêutico, diante dos vários sentidos e pelo instrumento da crítica, provoca possíveis rupturas ético-filosóficas que são, necessariamente, educativas e, fortemente, da educação popular.
Em Platão, o diálogo vai se apresentando como um caminho (método – meta + hodós) sempre aberto para uma seqüência de argumentação ou novas definições. E qual o método? Um procedimento sempre dicotômico (dialético) ou de divisão em duas partes; em seguida, uma das partes será tomada para nova definição, que novamente será dividida, dando continuidade a este procedimento. Este método duplo conduz, de início, a uma técnica de argumentação que procura desmontar os conhecimentos prévios, tidos como verdadeiros e definitivos daquele que está sendo questionado pelo mestre, através da ironia.
O segundo momento – a maiêutica - decorrente do primeiro, prepara o discípulo, por meio de perguntas, para que o mesmo traga à luz a verdade que há dentro de si mesmo. Contudo, é pela anámnesis (reminiscência) que se constitui a condição (subjetiva) desse trânsito, exigindo o diálogo para a sua concretização. Maiêutica, portanto, como um movimento dialógico para se chegar à verdade, um caminho do ‘eu’ para a própria interioridade. Este procedimento dialogal, portanto, conduz a educação para as bases, necessariamente, de uma episteme (ciência), distanciando-se do plano instável da doxa (opinião).
Assim, Platão, com a herança socrática, marca a direção da luta crítica (dialética) com as formulações educativas de seu tempo e com a tradição histórica de seu povo – com a sofística, a retórica, a matemática, legislação e Estado, astronomia, medicina, poesia e música. Procura encontrar o caminho para essa meta ao apresentar o problema da essência do saber e do conhecimento, além de outras temáticas presentes, até hoje, no processo educativo humano, tais como: a virtude, a política, um novo saber, o amor, a justiça e a escatologia. Em Platão, é razoável a compreensão de que a estrutura interna do pensamento é dialógica. O pensamento, o discurso ou a razão se tornam a mesma coisa, expressos por um diálogo silencioso da alma, exigindo a possibilidade de transição da esfera da subjetividade para a da intersubjetividade. Esta possibilidade se concretiza a partir deste mesmo diálogo da alma com ela própria. É o diálogo se expressando como um agir (dialégesthai) que acontece internamente no pensar. Assim, passa a oferecer as condições de realização de si com o outro, estando incluído na ação concreta do falar.
Do ponto de vista hermenêutico, a partir dessa forma literária do diálogo, há uma necessidade de conexão do escrito com o oral. No oral, está presente o contexto e este contém o outro em condição de ouvir, passando a existir uma relação intersubjetiva, estabelecendo uma ética do ouvir. Expressa-se, dessa maneira, uma unidade na obra platônica ao tematizar o diálogo, que é concreto e um processo intersubjetivo. Este processo, de forma dialética, significa que o eu remete-se ao outro e, ao se remeter ao outro, volta-se a si mesmo.
Há, em Platão, um diálogo interior, aquele que a alma realiza em si mesma, e um diálogo exterior, em relação ao outro, que são dimensões de um mesmo processo, isto é, o caminho da ascensão da alma em direção ao mundo das idéias. A ação pelo diálogo exterior abre a perspectiva de surpreender-se de forma dupla, em relação a si e ao outro, enquanto se pergunta ou se responde. Este processo dialógico abre a condição de tornar possível a aprendizagem consigo mesmo através do outro (a maiêutica).
Isto também põe em exame a formulação de que “sei que nada sei”, abrindo a condição de se estabelecer como um princípio ético, implicando uma postura de ouvir. Mas, este pode se apresentar como um princípio epistêmico, enquanto uma ascensão dialógica ao mundo das idéias. Esta é uma forma de ver essa ascensão com o outro. Abre-se um caminho dialético que se realiza pelo diálogo em direção à verdade. Promove, dessa forma, uma visão do outro não mais como uma sombra do não conhecimento.
Considerando a estrutura interna do pensamento como sendo dialógica, em Platão, a relação dialógica é uma relação intersubjetiva do pensamento e tem como base a dialética. Assim é que se estabelece o diálogo como a base dos alicerces da razão política. A perspectiva platônica pode ser interpretada como denunciadora, ao considerar uma autoconsciência marcada pelo conflito da idéia de autonomia do sujeito e uma ética do discurso, apoiada no diálogo pela dialética. E esta é uma ética que tem seus fundamentos em princípios da ação comunicativa - da intersubjetividade. Este reino da intersubjetividade está, hodiernamente marcado em Harbermas, em sua teoria do agir comunicativo. Em Habermas, a razão comunicativa expressa a interseção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos. Assim, resgata o diálogo exigido na esfera social da cultura. Questiona valores e normas. Torna possível a reconquista do terreno da razão instrumental dominante, ao restabelecer a capacidade da ação comunicativa para todos. É a partir dos conceitos de razão comunicativa e de mundo da vida que Habermas aposta num processo educativo pela comunicação, tendo no diálogo a base que pode conduzir a um mundo melhor, em que as relações humanas e sociais sejam mais transparentes e menos violentadoras.
Propugna por uma práxis de um novo tipo que procura “elevar a humanidade à razão científica universal, de conformidade com normas de verdade, transformando-a numa humanidade renovada a partir de seus fundamentos” (Habermas, 1975: 294). Uma teoria social que se reafirma por uma reinterpretação das necessidades históricas e práticas, dos fins, dos valores e das normas, orientando-se para uma práxis emancipadora. Contudo, este exercício praxeológico intersubjetivo, presente o diálogo, no campo da educação, é realizado na vasta experiência de Paulo Freire.
Para Freire (1983a), o homem existe no tempo. Está dentro, mas também está fora, enquanto herda, incorpora e modifica esse mundo. O homem e o mundo estão impregnados de um sentido conseqüente. Sua presença no mundo não se dá de forma passiva. Não se reduz apenas a uma das dimensões da vida, seja a natural ou a cultural. A sua ingerência não é de expectador. Acontece em ambas as dimensões. Volta-se à realidade na busca de realizar-se pela transformação, tanto de si mesmo como da natureza. Este nível de consciência se destaca, segundo Freire (ibid.: 61), por substituir explicações mágicas por princípios causais e:
“Por procurar testar os ‘achados’ e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a argüições”.
Há, ainda, uma perfeita relação entre o diálogo e a intersubjetividade. O diálogo só acontece entre sujeitos.
“O diálogo é um bom ponto de partida e um bom ponto de chegada para recuperar a igualdade. Nas relações face a face – e as relações entre educador e educando o são – a recuperação da democratização reside em poder estabelecer uma ação comunicacional que vise construir a identidade do oprimido e posicioná-lo na luta pela libertação” (Russo et al. 2001: 120).
Ora, sem identidade, não há condição de libertação por parte do oprimido. Sua identidade é componente do mundo da vida, sua exterioridade, a razão do outro, tendo aí o início do caminho para a liberdade. Liberdade que se constituirá como elemento utópico, pois se afirma num pensamento que virá sem um receituário definido e sem a inexorabilidade histórica.
Com o estabelecimento da dialogicidade como fundamento em sua pedagogia popular, Freire (1983) cobra um diálogo verdadeiro para que haja a promoção de valores éticos no processo educativo. Com isto, admite que a sua existência se dará quando firmada a condição de, também, pensar de forma verdadeira. “Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade” (ibid.: 97).
Considerações
Como expressão de síntese, é possível vislumbrar-se desta discussão, a partir das várias experiências históricas e recentes que a educação popular pode ser abalizada na perspectiva de um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas, relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios e experiências que, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Mesmo expressando uma unidade, é um sistema aberto que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, a educação e o popular e vice-versa. Um sistema aberto de trabalho educacional detentor de uma filosofia que, por sua vez, pressupõe as seguintes dimensões: uma teoria do conhecimento, metodologias dessa produção de conhecimento, conteúdos e técnicas de avaliação, sendo sustentada por uma base política.
Essa teoria do conhecimento tem como pressuposto inicial a realidade e um fazer história compreendido à medida que surgem novos temas ou que se aprendam e realizem valores inéditos. História quando o homem faz novas formulações, mudando as suas maneiras de agir, pensar e relacionar-se com os demais humanos. Vai se constituindo como um trabalho humano, em que se dá em e pela prática do indivíduo, enquanto humaniza a natureza e naturaliza a dimensão de ser humano.
A sua verdade exige o debruçar-se sobre a própria realidade, sob a forma de atividade prática. Detém, por sua vez, uma metodologia capaz de possibilitar que cada um se transforme em protagonista de sua própria história, à medida que seja útil à organização de seus pares, sistematizando e reelaborando os conhecimentos de sua classe. Presta-se para o desenvolvimento das habilidades e de atitudes como: orientar, dirigir e organizar debates e reuniões, sistematizar e expressar idéias e opiniões, reunir, criticar e sintetizar informações. Além disso, requer a percepção da importância e necessidade de organização e troca de informações entre os próprios trabalhadores.
Contém conteúdos e avaliação originados da própria realidade, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico, pois ele está sendo dirigido aos e pelos moradores de periferias de cidades, camponeses, trabalhadores e demais categorias de pequenos produtores rurais de trabalho direto e nos mais diferenciados ambientes do campo ou da cidade ou nas diversas instituições da sociedade civil, inclusive nas escolas de educação formal. Exige pensar que tudo está em movimento, inclusive, o ato pedagógico. Recorre-se à análise do processo que também está em movimento. A avaliação dos conteúdos da educação popular, por sua vez, só terá sentido quando for conduzida para a análise organizativa de todo processo educativo em desenvolvimento. A educação popular é alimentada por uma base política enquanto promotora da superação do silêncio imposto a cada um, pela preparação intelectual dos trabalhadores, pela construção moral dessa classe e pela capacitação para o exercício da direção política, acompanhada dos valores e fundamentos em todas as suas dimensões, fomentando, inclusive, práticas autogestionárias.
Destaque-se a necessidade da produção do conhecimento e não simplesmente a promoção de uma relação entre saberes acadêmicos e saberes populares. Essa produção de um conhecimento transpõe a dimensão meramente de troca de saberes. Isto ocorre nas ações extensionistas, nos exercícios de autogestão e em tantas outras possibilidades, mas não se constitui, simplesmente, de processos relacionais. Vislumbra-se a produção do conhecimento acadêmico com a participação da comunidade na busca de autonomia própria.
Os processos em educação popular podem expressar resistência às formulações de uma ética e de uma moral utilitária que fomentam e enfatizam a individualidade em nome, prioritariamente, de um benefício pessoal. A ela contrapõe-se a ética da comunicação, do diálogo, da responsabilidade social, da democratização, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito às diferenças, das escolhas individuais e grupais, elementos que potenciam a dimensão comunitária e a solidariedade entre as pessoas, na construção de outras formas de racionalidade. Assim, é que se abrindo ao campo das mudanças, possibilita o exercício do empoderamento das pessoas, a ênfase em sua individualidade quando contribui à construção das identidades, tanto do
indivíduo como coletivamente, enfatizando os aspectos subjetivos, com destaque às questões de gênero, sob o manto especial da produção das coisas para ser assegurada a vida.
A resistência à massificação e ao nivelamento passa a dar sentido às diferenciadas metodologias de educação popular. Esta, ao utilizar uma perspectiva dialética, contribui, decisivamente, para o encontro de estratégias e de condições de lutas para as transformações da realidade. Enfim, uma resistência construtiva de utopia como a busca por liberdade. Uma liberdade no sentido político, ético e filosófico, que mostra as limitações dessa própria liberdade, considerando a existência do outro, com a clareza de que o humano não é um ser acabado, posto que histórico.
Assim, várias questões continuam desafiando as práticas educativas populares que, mesmo vislumbrando a competência, assuma um significado para a produção, para o social, para a tecnologia e, sobretudo, para a cultura. As realidades são muito distantes uma das outras e as práticas em educação popular acompanham essas realidades, porém, será interessante a pesquisa para detectar similitudes de relações presentes nos variados processos, na perspectiva de se contribuir com maior clareza para esse trabalho educativo tão diferenciador mas tão semelhante pelas definições de suas buscas, alimentando uma teoria pedagógico-popular, cujos vetores político-humanistas reforcem as lutas coletivas por liberdade, por igualdade, por justiça e por felicidade.
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